Quando olho o céu não faço distinção se lá moram anjos ou nuvens, se lá se rasgam buracos negros, se porventura as estrelas são míopes quando me olham, ou se serei eu que ao olhá-las as confundo com pequenas e endiabradas fadas. Para mim o céu é um lugar, onde se desenham trajectos de asas, montanhas de algodão doce, jardins de incandescentes canteiros, pontos de fuga de devaneios, longínquo anoitecer em preces ingénuas e roucas, mistura de lágrimas e prazer, beira-mar do outro lado do horizonte, um querer viajar em naus catrinetas, seguindo a estrela do norte.
O céu e a bússola são para mim duas invenções saídas de uma mesma ideia: nortear o sentido do sonho.
Houve um dia que tive um sonho, ter asas verdadeiras. Pois foi com grande irritação que, tendo participado como anjinho na Procissão do Sr. dos Passos, tive de engolir uma firme resposta negativa da D. Nezinha, a dona das asas que entendeu ser eu um anjo sem asas. Devia ter à volta dos cinco anos quando pedi à minha Avó para me inscrever na procissão que antecede a Páscoa. Ia apenas com o fito de ganhar asas. Como isso não aconteceu, houve alguém no céu que se vingou por mim. Bom, nesse ano resolveu a organização abrir a Procissão com um rosário enorme segurado por cerca de cinquenta anjinhos. Eu lá fui já sem vontade nenhuma de segurar nada, queria era ir lanchar a casa dos meus Avós. Esperava-me um doce de tapioca batido com claras em castelo, melhor do que doce d'anjo. Ia tudo muito bem quando uma catequista com ar de Gestapo diz: "Parem! Um anjinho está dentro do rosário e vai ao contrário!". Pois, era eu. O rosário estava todo torcido, da trança de uma rapariga saía uma labareda de fogo, a que lhe seguia tropeça com o susto do grito da catequista e espeta-lhe a vela na cabeça, outra tinha perdido as sandálias, uma prima minha que assistia no público batia palmas. Tudo por causa das asas que não me deram. Foi a única vez que participei nestes eventos populares de cariz religioso e de formato barroco.



Quando, por um justo amor dos jovens, se sobe desta beleza mortal até ao ponto em que se começa a ver o belo em si mesmo, então atinge-se quase o termo. Tal é a verdadeira via amorosa, na qual se avança só ou guiado: a partir da beleza mortal, elevar-se incessantemente para o imortal, como por degraus, de um corpo belo para dois e de dois para todos; dos corpos belos para a beleza dos costumes; daí para os conhecimentos belos e dos conhecimentos, finalmente, para esse conhecimento que não tem outro objecto senão a beleza em si mesma: então revela-se, no fim, o próprio ser do belo.
PLATÃO, A República ("O Banquete")
Uma Carta que nunca teve resposta:
Meu estimado ... embora não tenha obtido resposta às outras mensagens que lhe enviei, envio-lhe o CD do Power-Point, caso esteja interessado vê-lo com a dignidade que merece...
Naquele momento foi a minha identidade que eu vi lesada, eu não sou uma académica, mas artista e os artistas não se impressionam com fogueiras, nem com modos inquisitórios, cujo modelo já não interessa a ninguém. Em estado de choque, em vez de paralisia eu reajo como um animal selvagem ferido, sou uma temperamental domesticada.
De resto e como sabe quando quis desistir foi por saber que os sentimentos me iam levar ao desespero. Agora o sofrimento ainda é maior. Não o vejo mais e isso dói. De início estava resignada...Se não fosse o que é, mas um pobre empregado de balcão os meus sentimentos seriam exactamente os mesmos: atracção física, intelectual, encantamento, ternura, amor, paixão.
Agora até por uma palavra sua, nem que fosse a mandar-me ao psiquiatra eu esperava ouvir. Lembro-me do reverendo em Juneteenth e não desisti até ao fim, só quando... Já estava tudo perdido. Envio-lhe a nossa fotografia que me acompanhou durante meses e com a qual dormia. Não me queira mal porque eu vou amá-lo para sempre, mas agora sei que para si eu não represento nada. Só me desespera não saber se está bem, ou se está mal. Rezo para que seja muito feliz. Como lhe disse na carta anterior se me batesse eu beijava-lhe a mão, se estivesse doente eu apertava-o contra o meu peito e dava a minha vida por si. É a sua pessoa que eu amo e para mim é o homem mais belo que existe. Realmente à sua beira não passo de uma pessoa sem préstimo, só sei pintar, inventar, cozinhar e transformar o mais insignificante no mais interessante, ou amar os outros e não tenho nenhuma valia. Hoje as fadas já não existem e isso está bem patente num dos quadros da Paula Rego.
P.S.:MAS OS CIÚMES SÃO GRANDES E COMO NUNCA INVEJEI NINGUÉM SÓ AGORA CONHEÇO ESSE SENTIMENTO, POIS QUEM VOLTAR A AMAR TEM MUITA SORTE EM TER UMA CRIATURA TÃO ADORÁVEL JUNTO DELA. EU CONHEÇO-LHE A ALMA E SEI QUE O...É BOM. SE TIVER PENA DE MIM PEÇA A DEUS QUE ME DEIXE MORRER NA MESA DE OPERAÇÕES.
Muito afectuosamente,
Naquele momento foi a minha identidade que eu vi lesada, eu não sou uma académica, mas artista e os artistas não se impressionam com fogueiras, nem com modos inquisitórios, cujo modelo já não interessa a ninguém. Em estado de choque, em vez de paralisia eu reajo como um animal selvagem ferido, sou uma temperamental domesticada.
De resto e como sabe quando quis desistir foi por saber que os sentimentos me iam levar ao desespero. Agora o sofrimento ainda é maior. Não o vejo mais e isso dói. De início estava resignada...Se não fosse o que é, mas um pobre empregado de balcão os meus sentimentos seriam exactamente os mesmos: atracção física, intelectual, encantamento, ternura, amor, paixão.
Agora até por uma palavra sua, nem que fosse a mandar-me ao psiquiatra eu esperava ouvir. Lembro-me do reverendo em Juneteenth e não desisti até ao fim, só quando... Já estava tudo perdido. Envio-lhe a nossa fotografia que me acompanhou durante meses e com a qual dormia. Não me queira mal porque eu vou amá-lo para sempre, mas agora sei que para si eu não represento nada. Só me desespera não saber se está bem, ou se está mal. Rezo para que seja muito feliz. Como lhe disse na carta anterior se me batesse eu beijava-lhe a mão, se estivesse doente eu apertava-o contra o meu peito e dava a minha vida por si. É a sua pessoa que eu amo e para mim é o homem mais belo que existe. Realmente à sua beira não passo de uma pessoa sem préstimo, só sei pintar, inventar, cozinhar e transformar o mais insignificante no mais interessante, ou amar os outros e não tenho nenhuma valia. Hoje as fadas já não existem e isso está bem patente num dos quadros da Paula Rego.
P.S.:MAS OS CIÚMES SÃO GRANDES E COMO NUNCA INVEJEI NINGUÉM SÓ AGORA CONHEÇO ESSE SENTIMENTO, POIS QUEM VOLTAR A AMAR TEM MUITA SORTE EM TER UMA CRIATURA TÃO ADORÁVEL JUNTO DELA. EU CONHEÇO-LHE A ALMA E SEI QUE O...É BOM. SE TIVER PENA DE MIM PEÇA A DEUS QUE ME DEIXE MORRER NA MESA DE OPERAÇÕES.
Muito afectuosamente,
...
Esta foi uma carta ridícula que agora, pela primeira vez, consigo reler com um sentimento de espanto, pois esta pessoa não era eu. Rejeito tudo quanto nela disse, sem nenhuma raiva, mas por me envergonhar de a ter escrito. Realmente ela não merecia resposta e ainda bem que assim aconteceu. De outro modo penso que agora seria muito infeliz e o certo é que me sinto liberta e feliz. É um fantasma do ridículo, mas a vulnerabilidade não é uma fraqueza, é apenas um estado de estupidez, a que cegamente nos submetemos. E agora recuperei a minha identidade, assim como a minha lucidez. Escrevam cartas de amor, mas a quem as merece ler, ou então escrevam cartas ridículas, mas engarrafadas e coloquem-nas numa prateleira de um supermercado para consumo imediato.
Respondendo ao desafio de Vergílio Torres do blog Banhos de Cinza, contar aleatoriamente seis episódios da nossa vida, resolvo terminar aqui um ciclo de histórias à deriva, fragmentos da minha memória, que marcaram ou foram episódios inconsequentes na minha vida.
Respondendo ao desafio de Vergílio Torres do blog Banhos de Cinza, contar aleatoriamente seis episódios da nossa vida, resolvo terminar aqui um ciclo de histórias à deriva, fragmentos da minha memória, que marcaram ou foram episódios inconsequentes na minha vida.
As regras são:
1. Pôr o link da pessoa que me convidou;
1. Pôr o link da pessoa que me convidou;
2. Escrever as regras do meme no blogue;
3. Contar seis coisas aleatórias sobre mim;
4. Indicar mais 6 pessoas e respectivos links;
5. Deixar um comentário a cada uma dessas 6 pessoas.