O complexo da arca de Noé é um sintoma que caracteriza a sociedade fraccionária. O desejo de tudo possuir, de tudo registar, porque só assim a vida tem significado. Regista-se até à exaustão, o casamento, as férias, o nascimento dos filhos, registam-se todos os momentos que consideramos simbólicos na nossa vida. Sem nos darmos conta, fraccionamos a vida numa prática simbólica, atribuindo carga simbólica ao tempo. O desejo obsessivo de conservação do momento é já um sinal de uma luta interna e individual, projectada no colectivo, contra a efemeridade do tempo. Aquilo que consideramos digno de registo transforma-se, pois, em objecto depositário das afeições. Deste modo, nascem as colecções, sejam particulares, sejam institucionais. As colecções são, por esta via, uma divisão clara entre a vida e a morte. A apropriação dos objectos, retirados do seu contexto, resgatados do seu tempo, reflecte o carácter emocional e afectivo que lhes atribuimos.
Tornam-se vestígios de um passado amalgamado no presente, numa universalidade que se baseia em sentimentos, desejos, gestos, rituais, em tudo o que é profundamente humano e que é orgulho de uma identidade a afirmar-se no tempo articulado pelo verbo ser, eu sou, tu és.
A palavra escrita é o primeiro passo para a desmemoriação. O texto possui uma estrutura que tende a transformar conceitos, que se articulam entre a realidade e o gesto, em conceitos estrictamente textuais e estruturados. A primeira fase do esquecimento verifica-se neste processo de passagem do discurso oral para o escrito.
A palavra escrita é o objecto de transição da voz para o silêncio.
OVOS E BOLERO DE RAVEL
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